segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Escutatória

"Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciados cursos de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir.

Pensei em oferecer um curso de escutatória, mas acho que ninguém vai se matricular.

Escutar é complicado e sutil.

Diz Alberto Caeiros que ... não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma. Filosofia é um monte de ideias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia.

Parafraseio Alberto Caeiros: não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma. Daí a dificuldade...

A gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor. Sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração. É preciso ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é sempre muito melhor...

Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade. No fundo, somos os mais bonitos!

Os pianistas, por exemplo, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as ideias estranhas.

Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos, estimulado pela Revolução de 64. Contou-me de sua experiência com os índios. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo silêncio.

Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar em seguida seria desrespeito, pois o outro falou os seus pensamentos. Pensamento que ele julgava essenciais. São-me estranhos, é preciso tempo para entender o que o outro falou.

Se eu falar logo a seguir, são duas possibiidades.

Primeira: fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava, eu pensava nas coisas que iria falar quando você terminassse a sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado.

Segunda: ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre ela.

Em ambos os casos, estou chamando o outro de tolo. O que é pior do que uma bofetada.

O longo silêncio quer dizer: estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou. E assim vai a reunião.

Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia.

Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência. Ele se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras. No lugar em que não há palavras. A música acontece no silêncio.

A alma é uma catedral submersa.

No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a gente fica de boca fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Aí, livres dos ruídos dos falatórios e dos saberes filosóficos, ouvimos a melodia que não havia. Que de tão linda nos faz chorar.

Para mim, Deus é isso: a beleza que se ouve no silêncio.

Daí a importância de saber ouvir o outro - a beleza mora lá também.

Comunhão é quando a beleza do outro se junta com a beleza da gente num contraponto".

Rubem Alves